RESUMO: O presente artigo tem como objetivo expor o conceito de software e apresentar alguns aspectos da Lei n. 9.609/1998, destinada à proteção intelectual dos programas de computador, indicando o arcabouço mínimo de proteção existente na legislação brasileira. Na sequência, será exposto como as modificações tecnológicas podem impactar e modicar aspectos de comercialização de licenças e transferência de tecnologia, bem como será apresentada a possibilidade de uso da tecnologia “NFT” para tais transferências de titularidade e as vantagens como meio de prova e rastreio das transferências.
Palavras-chave: Software. Programa de Computador. Sociedade da Informação. NFT. Non Fungible Token.
1 INTROITO
É indubitável que a evolução da tecnologia traz em seu bojo não apenas novas possibilidades de interações com as máquinas e novos meios de execução de atividades cotidianas mas, também, uma nova configuração social e novos relacionamentos humanos. Em decorrência destas novas possibilidades de atividades e interações sociais, é necessário que o ordenamento jurídico – se não atualizado na mesma velocidade – seja compatibilizado com tais mudanças, a fim de continuar garantindo a devida proteção às pessoas, às relações humanas e aos bens envolvidos em tais interações.
O presente trabalho tem por escopo apresentar a compatibilização da legislação pertinente à proteção de direitos autorais no Brasil com o uso das novas tecnologias de comercialização e transferência de ativos não fungíveis, utilizando-se como recorte a legislação de regência da propriedade intelectual de software, qual seja, a Lei n. 9.609/1998.
Assim, a primeira parte do trabalho estará dedicada a apresentar a proteção jurídica atualmente aplicável aos programas de computadores (softwares) de acordo com a legislação nacional, situando-a dentro da proteção dos direitos autorais e apontando os padrões mínimos de proteção em relação aos quais é devida observância, seja do ponto de vista do autor do programa, seja do ponto de visto daquele que adquire uma licença de uso.
Isto apresentado, considerando-se que o trabalho aponta para as novas tecnologias, demonstrar-se-á o quanto da legislação atual é passível de conciliação com o uso das novas tecnologias, sem prejuízo da proteção que deve ser conferida à matéria.
Nesse sentido, a segunda parte do presente trabalho comenta sobre as tecnologias passíveis de uso para comercialização de ativos protegidos por direitos autorais – no caso do recorte do presente artigo, os programas de computador – a partir do uso da blockchain e dos NFT´s.
O interesse sobre tais temas parte da constatação de que tais tecnologias têm se revelado inovadoras e disruptivas, pois permitem que o comércio eletrônico de ativos digitais seja mais célere, eficiente e seguro. São tecnologias que já vem sendo utilizadas ativamente por alguns setores específicos, tais como o financeiro, de obras de arte e de música. No entanto, há potencial de extensão de uso de tais tecnologias para uso em setores que demandam a proteção de propriedade intelectual.
Ao final, do cotejo da legislação em vigor com as possibilidades de uso da tecnologia, serão apresentadas as considerações sobre a possibilidade de utilização sem vulneração ou infringência da proteção já existente.
2 CONCEITO DE PROGRAMA DE COMPUTADOR
O programa de computador é, essencialmente um conjunto organizado de instruções expressas em linguagem própria. A linguagem pela qual as instruções se organizam, em geral, são codificadas e se utilizam da tecnologia binária, a partir da qual uma máquina física pode compreender as instruções que se lhe são aplicadas, pela interpretação da combinação de símbolos no número zero e do número um.
É possível afirmar, portanto, que toda informação que é processada por uma máquina (texto, imagem, som e vídeo) é obtida através desse sistema: os programas de computador ordenam informações e comandos em linguagem própria, fundada na infinita possibilidade de combinações de zeros e uns, transformando-as em informações compreensíveis ao ser humano.
Em resumo, o programa de computador, ao prover a máquina de instruções de processamento, a transforma em bem capaz de gerar informação em formatos apreensíveis ao ser humano, bem como em bem capaz de executar determinadas tarefas e cumprir funções úteis ao ser humano, apoiando usuários domésticos e profissionais especializados, assim como empresas e indústrias a atingirem seus fins de forma mais rápida, confortável e confiável.
É de se notar, portanto, que os equipamentos físicos de uma máquina (hardware), isoladamente considerados, não são capazes de executar qualquer tarefa útil, até que lhes seja aplicado programa com linguagem específica que indique aos componentes eletrônicos a atividade a ser executada.
No mais, o software pode estar contido em suporte de qualquer natureza: desde o suporte de mídias físicas (cada vez mais raras como pen drives e CD´s, por exemplo), até suporte digital (armazenamento em nuvem, por exemplo).
Embora tais elementos sejam essenciais à compreensão e definição do que é um software, sob a ótica jurídica, nem todos esses aspectos são determinantes à proteção legal a ser conferida a este produto da atividade humana. Para fins de proteção legal do programa de computador, é preciso compreende-lo, precipuamente, como um produto da atividade intelectual humana, com um viés de aplicação de conhecimentos de natureza técnica, dado que somente é possível cria-lo a partir de conhecimentos e habilidades pertinentes e específicas.
Na doutrina, ainda há alguma divergência acerca da proteção a ser dada ao software, embora as legislações ao redor do mundo sejam majoritárias em reconhecer seu caráter de direito autoral. Explica-se.
Os bens materiais ou imateriais que resultam da atividade intelectual e criativa humana, em geral, situam-se sob a proteção da Propriedade Intelectual que, por sua vez, encerra em si dois sistemas de proteção distintos: de um lado, a propriedade industrial, em que a criação humana é marcada pelo fim útil e econômico, sujeitando-se a algum processo técnico – são assim as invenções, os desenhos industriais e as marcas; de outro lado, o direito autoral, em que a criação humana tem fins estéticos e/ou de enlevo e aperfeiçoamento humano – são assim as obras literárias, artísticas e científicas.
Portanto, em que pese o caráter utilitário e industrial do software, este é reconhecido como fruto de um processo intelectual, já que dependem, como pontuado, de um esforço humano que combine criatividade e habilidade técnica, com emprego de mecanismos linguísticos próprios, demandando uma atividade personalíssima do programador, voltada a prover informações cognoscíveis e voltadas a facilitar e incrementar as atividades de terceiros.
Outrossim, a tutela deste trabalho criativo pela sistemática do Direito Autoral, via de regra, é mais favorável ao autor-programador, dado que menos dispendiosa e burocrática. Existe, ao redor do mundo, por sua vez, divergência quanto à forma de proteção nas legislações ao redor do mundo. Naquelas de matriz fundada na common law, vigora o copyright em que a proteção está voltada essencialmente à obra, proibindo a sua cópia, ao passo que na proteção sobre o direito autoral protege-se o autor.
A diferença está basicamente nas consequências jurídicas: enquanto que para o copyright restam protegidos apenas os privilégios patrimoniais, no direito autoral há uma proteção ao direito pessoal do autor, integrando-o em alguma medida aos seus direitos da personalidade. Nesse sentido, quando considerada uma forma de expressão da personalidade do autor, toda ofensa dirigida que é dirigida à obra implica, necessariamente, em ofensa à imagem e honra de seu criador/autor, como se a ofensa perpetrada tivesse sido direcionada à própria pessoa, representando o estreito vínculo entre a obra e o autor.
3 PROTEÇÃO DO SOFTWARE NA LEGISLAÇÃO NACIONAL
Considerando-se o viés de proteção autoral conferido ao software, na legislação pátria, mister fixar como ponto de partida o inciso XXVII do artigo 5º da Constituição Federal, que dispõe que aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo em que a lei fixar. Portanto, o texto constitucional optou essencialmente pela proteção patrimonial, sendo certo que a proteção de direitos da personalidade tem como fundamento outros dispositivos legais, a serem adiante apresentados. Nesse sentido, em âmbito nacional tem-se a Lei n. 9.609 de 20 de fevereiro de 1998 (dita “Lei do Software”) que dispõe sobre a proteção de propriedade intelectual de programas de computador e sua comercialização. Inequívoco também que o programa de computador se submete à tutela geral dos direitos autorais, contemplada na Lei n. 9.610/98, no que for compatível.
Portanto, do texto constitucional emerge que se trata de direito exclusivo, cujo núcleo está relacionado à utilização, vindo a legislação específica infraconstitucional a tratar e contemplar os aspectos relacionados à publicação e à reprodução.
Inicialmente, mister considerar que a legislação pátria consolida a máxima doutrinária de que não há proteção à ideia abstrata, mas à expressão de tal ideia (artigo 8º, inciso I da Lei n. 9.610/98). No que tange aos programas de computador, compreende-se também toda a documentação do programa, seja a documentação técnica (geralmente destinada a outros programadores responsáveis por programas passíveis de interação), seja a documentação com instruções de operação (que é a documentação de auxílio voltada ao usuário). São considerados bens móveis (artigo 3º da Lei n. 9.610/98) e independe de registro prévio (artigo 18 da mesma legislação em comento).
Inexistem direitos morais em relação ao software, exceto aqueles relacionados aos direitos de paternidade (direito moral de ter a obra reconhecida como sua e de associa-la ou não ao seu nome ou pseudônimo) e de oposição a alterações, esta última condicionada a prejuízo à honra ou reputação do autor/titular. Assim e em tese, eventuais atos ofensivos à reputação do programa de computador não se comunicam à esfera íntima de seu criador, como ocorre em relação aos demais direitos autorais – e como já pontuado.
Quanto proteção da expressão econômica, o software é protegido como bem de comércio e o artigo 31 da Lei n. 9.610/98 prevê que as diversas formas de utilização das obras são independentes entre si e que a licença de uso promovida para determinado uso específico ou modalidade seja extensível a outra (estabelece-se, portanto, uma interpretação restritiva que é aplicável aos softwares). A cessão total ou parcial dos direitos de autor deve ser feita sempre por escrito e é presumidamente onerosa (artigo 50 da Lei n. 9.610/98).
Na forma da lei autoral (artigo 9º), a exploração econômica do software, quando dirigida ao consumidor final, deve ser efetivada mediante contrato de licença de uso – que é a aquisição do direito de usar o programa e que, portanto, não se confunde com a aquisição da titularidade do programa. Pela legislação de regência, qual seja, o artigo 9º da Lei n. 9.609/1998 são vedadas quaisquer formas de contrato para uso de programa que não seja por intermédio da licença – nesse sentido:
O fato de alguém pagar mensalmente para utilizar um programa não caracteriza essencialmente um contrato de aluguel. O contrato ainda será uma licença de uso, porém, com pagamento parcelado. Esta condição foi estabelecida na Lei para permitir que os direitos sobre o software fiquem todos sob o domínio de seu autor. Ninguém, além dele, poderá permitir a utilização, reprodução ou modificação do programa (ARRABAL, 2008, p. 34).
Ainda de acordo com o citado autor, o principal e único direito que o usuário exercerá, portanto, sobre o programa de computador é aquele de usa-lo de acordo com os fins aos quais se destina.
Em relação ao prazo de proteção, o parágrafo 2º do artigo 2º da Lei de software prevê o prazo prescricional para o exercício dos direitos patrimoniais em 50 (cinquenta) anos, lapso temporal menor do que o previsto no artigo 41 da lei de direitos autorais (que é vitalício em relação ao autor somado a 70 anos em favor dos herdeiros). Nesse sentido, mister destacar que mesmo aqueles programas de computador considerados “abandonwares”, isto é, programas que deixam de ser comercializados pelo decurso de tempo e pela obsolescência, continuam recebendo proteção pelo prazo legal.
Outrossim, a despeito de ser comum a situação de não comercialização do software – exatamente pelo contínuo e rápido avanço das tecnologias associadas – não é possível presumir a desistência dos direitos relacionados à criação do programa de computador por parte do seu titular. Portanto, o uso livre de um programa, ainda que fora de comercialização, somente é possível em duas hipóteses: pelo decurso do prazo legal (quando passa ao domínio público) ou por manifestação expressa do autor nesse sentido (aqui, o programa de computador será denominado de “software livre”).
Aquele que figure como autor de um software dispõe, a seu favor, de amplas e irrestritas possibilidade de comprovação da autoria – sendo dispensável o registro prévio para fins de exercício da proteção autoral concernente. Nesse sentido, o registro de um programa de computador tem caráter meramente declaratório e não constitutivo de direito, nos termos do parágrafo 3º do artigo 2º da Lei n. 9.609/1998.
Na hipótese de registro do programa, nos termos do mesmo artigo 3º em comento, este deverá ser realizado perante “órgão ou entidade a ser designado por ato do Poder Executivo, por iniciativa do Ministério responsável pela política de ciência e tecnologia”. Tal determinação legal deve ser integrada pelo disposto no Decreto nº 2.556, de 20 de abril de 1998 que, em seu artigo 1º, estabelece que “os programas de computador poderão, a critério do titular dos respectivos direitos, ser registrados no Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI”, sendo que o procedimento para registro possui disciplina específica dada por tal resolução.
Em termos gerais, da lei de software e de tal resolução emergem como necessário que o registro junto ao INPI contenha os dados do criador do programa de computador, a identificação e a descrição funcional do programa e trechos de seu código que sejam suficientes para identificação e caracterização de sua distinção e originalidade. Nesse aspecto, mister mencionar que como o software afasta-se da proteção da propriedade industrial, diversamente do que ocorre com o registro de marcas e patentes, não há qualquer exame prévio ao registro sobre sua substância.
Por fim, merecem destaques as questões relativas à transferência de tecnologia (artigo 10 da Lei n. 9.609/1998) em que, além da cessão formal escrita, devem ser entregues ao adquirente a documentação completa do programa, especialmente aquela relacionada ao seu código-fonte, o memorial descritivo, as especificações funcionais e outros elementos que sejam essenciais e/ou indispensáveis à tecnologia sob negociação, conforme parágrafo único do artigo 11 da mesma legislação em referência.
4 PROBLEMAS ATUAIS
A proteção do direito autoral – em comparação aos demais ramos e institutos do Direito – é criação recente e parte da doutrina ainda questiona os fundamentos de proteção de tais aspectos da atividade humana. Essencialmente, os fundamentos de proteção do direito autoral estão ligados ao autor – dado que sua atividade intelectual é única e promove criações personalíssimas – e ao caráter econômico das criações.
No entanto, como já asseverado desde o início do presente trabalho, mister compatibilizar a necessidade e os fundamentos de tal proteção às constantes evoluções tecnológicas que – por sua vez – conduzem à necessárias evoluções das relações sociais e forma de proteção dos bens juridicamente relevantes. Nesse sentido, salutar o questionamento de José de Oliveira Ascensão (2020, p. 7):
O Direito Autoral está originariamente dependente da realidade histórica constituída pela emergência da sociedade tecnológica. É perante esta que se haverá justamente de perguntar se a atribuição de direitos exclusivos não se tornou uma exigência inelutável nos dias de hoje. Que razões absolutas levariam então necessariamente à atribuição de direitos autorais exclusivos na sociedade tecnológica? Tem-se recorrido sobretudo à dignidade da criação intelectual, por um lado, e por outro à observação de que os meios de difusão da cultura de massas permitiriam doutro modo a prática negativa da exploração de obras alheias.
Nesse sentido, dada a necessidade de que o conhecimento e a tecnologia circulem rapidamente e de maneira simplificada – livre das amarras burocráticas que acabam por impor entraves e tempo incompatíveis com os anseios da Sociedade da Informação, é o que os ordenamentos jurídicos de todo o mundo, na seara do direito autoral, mais tem se voltado à liberdade, para promoção da informação e da comunicação do que à proteção de direitos exclusivos. Como bem pontua a Professora Patrícia Peck Pinheiro (2021, p. 25): “O modelo de riqueza da Sociedade pós-Digital está baseado em ativos intangíveis, onde, do ponto de vista jurídico, crescem de importância as questões que envolvem a proteção da propriedade intelectual”.
No que tange ao objeto específico do presente trabalho, qual seja, o software, alguns autores, como o Professor Manoel J. Pereira dos Santos chegam a propor uma mudança no viés de proteção, retirando os programas de computadores da proteção de direito autoral e situando-os sob o direito de patente. Fato é que, como bem aponta referido doutrinador, a proteção do programa de computador pelo direito autoral já é controvertida em si mesma, dado que há clara divergência de proteção entre ordenamentos com base na civil law e na commom law.
Enquanto que para esses últimos a proteção está essencialmente voltada para o copyright – isto é, as estipulações jurídicas sobre o direito de publicação, divulgação e de cópia, o regime da civil law está mais voltado à pessoa do autor e proteção dos direitos de personalidade que exerce por ser titular de uma obra.
Analisando a Lei n. 9.609/1998 vê-se que tal, em alguns momentos, tende a se afastar do regime geral de proteção de direitos do autor para se aproximar do regime de copyright, dado que excepciona a possibilidade de danos morais em relação ao software, bem como condiciona sua exploração comercial à licença de uso e à transferência formal da tecnologia, o que se afasta da amplitude que é conferida, por exemplo, às obras literárias e artísticas, que admitem cessão por todos os meios em Direito admitidos.
A proteção atualmente existente, portanto, parece suficiente e adequada ao caráter utilitário do software, sem que seja necessário pensar em um enquadramento sob o direito de patente que, na prática, dificultaria e tornaria mais burocrática a prova de autoria. É preciso, ao revés, que se pense em como utilizar as novas tecnologias para se garantir agilidade de circulação da informação, compatível com a previsão de proteção já existente.
No mais, um problema prático a ser enfrentado pertine aos meios de prova em caso de ações judiciais. No caso específico dos programas de computador, a prova a ser produzida tende a ser demorada e dispendiosa posto que, não raro, envolve apreensão de equipamentos físicos e profissionais técnicos especializados para dirimir as condições afetas à origem, à instalação e à originalidade do produto.
Como bem observa José Carlos Costa Netto (2008, p. 173) é necessário, prima facie, que partes e Poder Judiciário promovam a preservação do meio físico a fim de se evitar a perda de prova por posterior alteração, e que a situação que for encontrada refletirá, apenas, a situação do momento em que analisado:
Considerando-se a natureza dos bens sub judice, ou seja, uma vez que independem de suporte material para sua efetiva fruição pelo usuário e, assim, permitem a sua remoção instantânea sem a possibilidade de verificação a posteriori de sua efetiva existência nos equipamentos (hardware) próprios ao seu armazenamento, lógica a conclusão de que o elemento “surpresa”, uma vez não atendido, resultará na possibilidade de não ser encontrado qualquer vestígio da utilização (ou inexistência em arquivo) do programa de computador objeto da averiguação intentada
E o referido autor conclui que a prova a ser produzida em caso de ação judicial tem por escopo basilar provar, em geral, a existência ou não de prova de autorização de uso na data em que efetivada a vistoria. Assim e também, quando se avalia o problema do ponto de vista prático, em que as questões de direito autoral serão submetidas ao Poder Judiciário, necessário se faz o exercício de vislumbrar como as novas tecnologias podem melhor prover partes e Juízo de provas para melhor solução das controvérsias.
5 PERSPECTIVAS
Como bem assevera o Professor Wilson Pinheiro Jabur (2013, p. 217) é necessário que a proteção intelectual reconheça de maneira adequada o valor das criações, para que mais autores, inventores e programadores continuem investindo em criação e desenvolvimento, para benefício e progresso da sociedade. No entanto, há de se reconhecer a existência de uma tensão de interesses que contrapõem titulares, usuários e o interesse público, dado que a sociedade anseia pela rápida e completa fruição dessas criações.
Nesse sentido, importa reconhecer que a Humanidade está mergulhando em uma nova estrutura social, dita “Sociedade da Informação”, com o surgimento de um ambiente digital em que o emprego da informática e dos recursos de telecomunicações é fator essencial de integração e de atingimento de fins, dado que fatores necessários à difusão e processamento de informações e da comunicação humana, restando como novo e principal veículo das expressões sociais, familiares, profissionais e culturais.
Conforme Professor Manoel J. Pereira dos Santos (2017, p. 249):
Ao contrário do que sucedeu com a implantação da radio-difusão, o consumo da informação escrita foi grandemente substituído pela informação digital, não só pela facilidade de acesso – sobretudo em face da descentralização das fontes de informação – mas, ainda, pela possibilidade de atualização contínua decorrente da própria dinâmica propiciada pelo ambiente digital.
E o mesmo autor prossegue (2017, p. 293):
Parece, pois, inevitável estabelecer um paralelismo com a atual discussão sobre o futuro do Direito de Autor. Como se sabe, existe atualmente enorme tensão entre duas correntes potencialmente antagônicas: aquela que advoga a maximização das medidas protetivas porque a Internet pode constituir uma ameaça à tutela dos criadores e aquela que sustenta a maior ponderação de valores, buscando um equilíbrio mais justo de interesses
Portanto, o elemento central da nova configuração social está fundada em dois pilares: o primeiro, na constatação de que a informação passa a representar o bem econômico mais importante à sociedade; o segundo, que a sociedade passa a demandar uma circulação da informação de maneira mais ampla e mais rápida. A tal cenário não escapa o software, ao revés: os programas de computador são as linguagens desse novo ambiente e as ferramentas indispensáveis para que a sociedade promova a circulação de da informação da maneira célere e ampla desejada.
Os programas de computador, em si, passam também a ser objeto da ânsia social de circulação da informação posto que, tão mais completas e eficazes sejam suas funcionalidades, mais útil e proveitoso será à estrutura comunicativa social. Nesse sentido é que se pode observar que alguns programas – de tão úteis, funcionais e eficazes – têm se tornado verdadeiros padrões nas mais diversas aplicações. Assim é que é de se considerar que diversos aspectos afetos à funcionalidade e à interação com o usuário acabam por vulnerar a proteção autoral ao software, tornando-a insuficiente.
De um lado, indaga-se se a fronteira entre o domínio da Propriedade Industrial e do Direito de Autor não se esgarça, permitindo a cumulação de formas distintas de proteção sobre o mesmo objeto. De outro lado, argumenta-se que os requisitos materiais de proteção autoral podem ficar comprometidos se novas modalidades de criação forem tratadas como obras intelectuais. Além disso, essas novas modalidades de expressão criativa podem conflitar com outros direitos e interesses juridicamente tutelados, reclamando um tratamento legal diferenciado.
Tais conflitos podem ser assim resumidos:
De um lado, indaga-se se a fronteira entre o domínio da Propriedade Industrial e do Direito de Autor não se esgarça, permitindo a cumulação de formas distintas de proteção sobre o mesmo objeto. De outro lado, argumenta-se que os requisitos materiais de proteção autoral podem ficar comprometidos se novas modalidades de criação forem tratadas como obras intelectuais. Além disso, essas novas modalidades de expressão criativa podem conflitar com outros direitos e interesses juridicamente tutelados, reclamando um tratamento legal diferenciado. O fato é que novos tipos de criações intelectuais reivindicam tutela legal e desafiam os critérios tradicionalmente adotados para a caracterização da obra intelectual protegida pelo Direito de Autor. (DOS SANTOS, 2020, p. 35)
Assim é o que o próprio avanço tecnológico em si pode trazer as respostas para a máxima proteção dos direitos de autor – especificamente aqueles aplicáveis aos programas de computador – bem como para a rápida circulação da tecnologia. Passa, portanto, o presente trabalho a se dedicar a uma breve conceituação e contextualização do NFT (Non Fungible Token, em tradução livre Token Não Fungível).
5 NFT (NON FUNGIBLE TOKEN)
O NFT pode ser definido como uma ferramenta criptográfica (tal como um certificado de autenticidade ou uma assinatura) que cria um ativo único – por isso dito “não fungível”.
Em geral, o NFT está baseado na tecnologia blockchain, que funciona como uma espécie de livro de registros, sendo útil para registrar a existência de ativos ou a efetivação de transações sobre tais ativos. A tecnologia de distribuição da rede de blockchain é distribuída, o que significa que todos os participantes da rede possuem acesso aos seus registros, havendo necessário consenso entre os participantes da rede quanto às transações que são realizadas – o que elimina registros duplicados e torna os registros imutáveis, dado que nem um administrador da rede poderá eliminar ou alterar dados já registrados.
Nesse sentido:
Distributed ledger technologies (DLTs) such as blockchain are emerging technologies posing a threat to existing business models. Traditionally, most companies used centralized authorities in various aspects of their business, such as financial operations and setting up a trust with their counterparts. By the emergence of blockchain, centralized organizations can be substituted with a decentralized group of resources and actors. (BAMAKAN, 2022)
Cada transação é registrada como um bloco de dados que se conecta a blocos de dados que lhe são anteriores e posteriores (daí o nome blockchain), outra característica que empresta imutabilidade aos registros que são efetuados. Dessa forma é que a rede de registro de dados em blockchain pode manter um registro seguro e imutável de um NFT. Cada NFT é alimentado por metadados que o tornam únicos – o que cria seu potencial de prova de autenticidade e de propriedade de um determinado ativo.
Dadas tais características, o NFT passou a se tornar uma ferramenta de interesse na seara da propriedade intelectual, já que a criação de um token com características únicas permite individualizar e relacionar a um autor-proprietário qualquer produto da criatividade humana que possa se expressar em meio digital, seja uma obra de arte, uma obra literária, uma marca, uma música, uma imagem ou – como no caso do presente trabalho – um programa de computador.
O NFT, assim, facilita a transmissão e a rastreabilidade de ativos digitais, dado que amplia a transparência e a segurança das operações realizadas sobre a circulação, alteração de titularidade de um determinado ativo.
5.1 Criação de um NFT
Inicialmente, é preciso que o interessado determine o que será transformado em NFT – que pode ser uma obra de arte, uma música, uma imagem ou, dentro do escopo do trabalho em tela, o código-fonte e descrição de funcionalidades de um programa de computador. Aqui, importa notar, inexiste qualquer violação ao Direito Autoral, dado que o interessado deverá criar um NFT de ativo sobre os quais já detenha os direitos de propriedade intelectual, sob pena de violação de outrem – como seria com a criação e uso de qualquer espécie de cópia não autorizada.
Após, o interessado escolhe a rede blockchain na qual deseja efetuar o registro da NFT e, orignalmente, foram criadas na rede blockchain “Ethereum”, que fora a primeira rede a oferecer um padrão gratuito para gerenciar e transferir NFT´s, garantindo propriedades exclusivas a cada token e consolidando informações do proprietário e funções de transferência, sendo ainda a mais comim. No entanto, há outras redes que estão implementando suas próprias versões, como a “EOSIO”, que é uma plataforma de pública de blockchain criada em 2018 e que afirma aos seus usuários não dispor de taxas de transação, aumentando, portanto, seu rendimento, além de outras plataformas de código aberto baseadas em blockchain que vem ganhando relevância, tais como “Algorand”, “Tezos” e “Flow” – todas passíveis de identificar e trabalhar com ativos fungíveis e não fungíveis.
E assim, a partir da rede blockchain escolhida e com o auxílio de uma carteira digital, o arquivo digital deve ser carregado, tornando-se um NFT comercializável.
A criação de um NFT portanto, é a criação de uma chave de identificação em uma rede baseada na tecnologia blockchain, que permite que as transações sejam posteriormente verificadas e conhecidas pelos demais usuários. O usuário que cria um NFT cria, portanto, uma possibilidade de transacionar um ativo que tenha identidade.
5.2 Uso do NFT para registro de titularidade
Como já pontuado anteriormente no presente trabalho, o titular-criador de um programa de computador possui ampla possibilidade de demonstração da titularidade da sua criação, não sendo exigível o prévio registro perante algum órgão de natureza pública ou estatal.
No caso de um software, a doutrina cita como exemplo de possibilidade de demonstração da titularidade o registro do código-fonte em meio impresso datado ou em mídia de armazenamento que possua condições de aferição de data da criação do registro. Com o uso do NFT, considerando-se o registro descentralizado, seguro e permanente pela tecnologia da blockchain, as informações de cada NFT encerrariam em si a marcação de origem da propriedade e os direitos que se lhe são relacionados. No mais, cada NFT pode ter apenas um titular por vez.
Embora o sistema pátrio exija, para fins de publicidade em relação a terceiros, que o registro seja efetuado perante o INPI, a transformação de um ativo em NFT mostra-se vantajoso para fins de proteção da propriedade intelectual, dado que produz quase que instantaneamente e sem muitos custos ou processos administrativos burocráticos uma prova da titularidade daquele ativo (no caso, um código fonte de um programa de computador), bem como permite sua transferência segura.
Portanto, a criação e venda de um NFT que contém trabalho ou criação de outrem que seja protegido pela propriedade intelectual e por direitos autorais, sem as devidas autorizações formais, é passível de ensejar as responsabilizações civis e criminais previstas na legislação como consequências da violação.
5.3 Uso do NFT para comercialização de licenças
Assim como um músico pode editar diversos álbuns em vinil para viabilizar a venda de seu trabalho artístico, ou assim como um artista plástico pode vender diversas estampas de uma criação visual sua, é possível a criação de diversos NFT´s idênticos, de modo que o ativo seja colocado à venda em qualquer ambiente virtual destinado à comercialização. Assim é que um NFT pode ser publicado, leiloado ou vendido.
Nesse caso, cada NFT pode ser atrelado a uma espécie de contrato automatizado (conhecidos como smart contracts) que podem elaborar a transação de pagamento ao proprietário-autor original para cada transferência de titularidade (isto é, de propriedade do conteúdo do ativo) ou para uso licenciado adquirido – o que se ajusta à sistemática pátria de comercialização de uso de software, como exposto acima.
No procedimento de criação do NFT (item 4.1, supra), o interessado define como o contrato automatizado vinculado à comercialização do NFT irá operar: se por preço fixo, por preço nominal ou por pagamento de royalties em caso de venda em mercados secundários. Como cada NFT possui seu valor, pode ser utilizado para eliminar os intermediários na negociação, simplificando as transações e ampliando as possibilidades de mercado.
6 CONCLUSÃO
Inequívoco que a sociedade atual tem passado por profundas e irregressíveis mudanças provocadas pela tecnologia e os novos arranjos sociais fazem surgir novas necessidades ligadas à priorização da circulação de informações por meios digitais, bem como que essa circulação seja rápida e efetiva. Os programas de computadores (software) são parte essencial do estofo das necessidades dessa nova configuração social, demandando proteção específica, dada sua essencialidade; mas demandando fluidez, dada sua urgência.
De fato, entretanto, quando se têm presentes os desafios da Revolução Digital, do imenso fluxo digital, da velocidade das trocas de dados (inclusive, de dados pessoais), de perda de fronteiras de registro (dados constantes de provedores internacionais, que evocam situações que mobilizam até mesmo o Direito Internacional) e controle,8 se percebe o quanto o mundo digital impõe novos desafios à gestão, ao controle e ao combate das formas pelas quais a violação de direitos pode se dar, nessa matéria (BITTAR, 2019, p. 178)
Para além de tais considerações, é preciso ponderar que as novas relações sociais necessitam estar submetidas e bem balizadas pelo ordenamento jurídico, impondo-se o questionamento acerca da necessidade de novas legislações ou se suficientes as legislações atuais, apenas com compatibilização do seu conteúdo e com o escopo de promover a rapidez e a desburocratização, facilitando a incorporação do uso de novas tecnologias.
Assim é que, na primeira parte do trabalho, fora utilizada como referência a legislação nacional acerca dos direitos autorais de software, com explanação de como o arcabouço jurídico pátrio promove a defesa dos interesses do autor-programador, titular dos direitos relacionados ao código-fonte e, portanto, titular do que torna o programa de computador desenvolvido único e original.
Na segunda parte do trabalho, por sua vez, fora apresentado o desenvolvimento da tecnologia, por meio das redes blockchain e de ativos digitais não fungíveis, rastreáveis e certificáveis, denominados NFT´s (Non Fungible Tokens). Fora explanado, ainda, como tal tecnologia tem possibilitado a comercialização de uma série de ativos, dando agilidade às transações e confiabilidade à origem.
Considerando-se os termos da legislação pátria vigente na seara da Propriedade Intelectual – especialmente dos direitos autorais aplicáveis a programas de computador – tem-se que as diversas questões relacionadas à cessão de titularidade ou de licença de uso podem ser objeto de questionamento, dado que a legislação ainda resta silente em relação a tais transferências em ambiente digital, bem como em relação aos meios disponíveis.
No entanto, do cotejo das especificidades da legislação vigente com a tecnologia do NFT, não se vislumbram incompatibilidades ou maiores dificuldades em relação à aplicação da tecnologia ao sistema de proteção já existente.
Do lado do programador-autor, titular dos direitos relacionados ao código-fonte, é de rigor apontar que o NFT tem encontrado diversas aplicações práticas que tem auxiliado criadores de obras intelectuais ou de ativos únicos a resolver problemas – especialmente aqueles relacionados à obtenção de uma proteção efetiva de direitos autorais que, pelos meios oficiais, pode levar alguns meses ou até mesmo anos, além de ser dispendiosa. O grande desafio que se pode solucionar, portanto, está relacionado a permitir a compatibilização do Direito de Autor com a ampla difusão do direito.
Portanto, com ajuda de recursos da tecnologia NFT, é possível acelerar esse processo de reconhecimento de titularidade com significativa segurança quanto à proteção da propriedade intelectual. Certamente que o uso do NFT não afasta a proteção de órgãos públicos oficiais. No entanto, permite a consolidação de prova de titularidade e a comercialização segura enquanto o interessado aguarda a concessão formal de proteção pelos órgãos governamentais, mostrando-se, sob tal ótica, como ferramenta útil à necessária rapidez da circulação da informação e fluidez da comercialização.
De outro lado, do ponto de vista do consumidor interessado em adquirir uma licença de uso, a tecnologia também se mostra compatível, na medida em que permite ao seu titular criar várias cópias do mesmo ativo. A partir de tais cópias, considerando-se que a legislação pátria determina que a transferência de propriedade ou cessão de uso deve se dar por escrito, partindo-se da premissa que os NFT´s estão essencialmente atrelados a contratos automáticos que podem garantir a confiabilidade, o registro e o rastreio das transferências e cessões de uso que venham a ser efetivadas, lícita seria a oferta de licenças por tais meios.
É preciso compreender que com a expansão das ferramentas digitais tornou-se muito mais simples a cópia e modificação de obras intelectuais. Assim, a possibilidade de criação de uma chaves de proteção da obra original e de suas licenças permitem a criação de uma certificação confiável de que uma obra é autêntica e não tenha sido objeto de qualquer alteração.
Por fim, do ponto de vista da prova em processo judicial, mister considerar que a ativação do NFT – que será validado em uma base de dados previamente estabelecida – permitirá uma transferência confiável de tecnologia e de licenças de uso, dado que permitirá o rastreio de todas as transferências do token e da propriedade intelectual no momento em que a controvérsia restar instaurada, ainda que havidas modificações posteriores.
Assim e portanto, na seara dos bens de criação protegidos pelo sistema de direitos autorais, os programas de computadores, especialmente por suas características de utilidade, aparentam bem comportar a “tokenização” para comercialização de licenças e de transferência de tecnologia, sendo certo que desnecessária qualquer alteração na forma de proteção atualmente conferida pela Lei n. 9.609/1998.
REFERÊNCIAS
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Mestranda em Função Social do Direito pela FADISP. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), com pós-graduação lato sensu em Direito Civil pela Universidade São Judas Tadeu e em Direito Tributário pela Escola Paulista de Direito. Atua como assessora de magistrado junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Currículo: http://lattes.cnpq.br/0166172555585884
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTIAGO, Marina Gabriela Menezes. Compatibilização do uso de NFT com a proteção de direitos autorais de programas de computador à luz da Lei n. 9.609/1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2022, 04:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /60075/compatibilizao-do-uso-de-nft-com-a-proteo-de-direitos-autorais-de-programas-de-computador-luz-da-lei-n-9-609-1988. Acesso em: 28 dez 2024.
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